26 de fev. de 2012

Histórias, cantigas e encantos do “Diário de Naná”

Ceiça Ferreira *

Mãe Gaiaku Luiza, Virgínia Rodrigues, Edith do Prato, Dalva do Samba, Mãe Filhinha. Essas mulheres, com suas vozes, histórias de vida, ensinamentos e experiências guiam a viagem do percussionista pernambucano, Naná Vasconcelos pelo recôncavo baiano, proposta do documentário “Diário de Naná”, que dirigido pelo cineasta Paschoal Samora acompanha essa busca da música do sagrado e do sagrado da música.


No começo do filme, com os meninos e meninas do projeto Bagunçaço, numa oficina com instrumentos confeccionados a partir de materiais reciclados, Naná afirma “o primeiro instrumento é a voz, e o melhor é o corpo”. É com o corpo que ele faz som com o caxixi, ouve e capta as sonoridades das ondas do mar, da feira, do trem, e principalmente, ouve histórias de outros corpos, que compartilham a palavra e toda a afetividade que ela carrega.


Nessa viagem, o filme vai mostrando as descobertas e encontros de Naná. Com o poeta baiano Antonio Vieira e o cordel “o resgate do berimbau”, do qual emerge a figura de Besouro Mangangá (nascido em Santo Amaro, foi um dos maiores capoeiristas da Bahia, herói admirado por sua valentia e citado em inúmeras canções nas rodas de capoeira), o qual Naná reverencia com o berimbau, e afirma: "Um dia Besouro voltará". Essa belíssima sequência me fez lembrar uma afirmação do professor Muniz Sodré sobre a capoeira, que diz “o ritmo do berimbau põe em jogo, integrados, corpo e alma do negro”.

O documentário também apresenta o encontro musical de Naná Vasconcelos com a cantora Virgínia Rodrigues, que imponente, canta para Ogum (orixá guerreiro, senhor do ferro e da metalurgia). Essa referência à religiosidade afro-brasileira, se junta às imagens de símbolos, elementos e objetos da feira de São Joaquim, onde Naná procura uma pavoa, presente que leva à Mãe Gaiaku Luiza, sacerdotisa do candomblé jeje, em Cachoeira.


Essa anciã que já havia aparecido cantando em sequências anteriores, agora conta um pouco de sua história de vida, a família-de-santo, os preconceitos enfrentados e as mudanças impostas à tradição; assim como Naná, também nos encantamos com a altivez e sabedoria de Gaiaku Luiza.

Acompanhamos Naná em armazéns à procura de um prato, não um qualquer, mas um que faça música. É um presente para Dona Edith do Prato, sambista de Santo Amaro, que ficou conhecida por fazer música com esse objeto doméstico. Com ela, Naná canta “o tombo do pau” e o “viola meu bem”, sambas tradicionais do recôncavo baiano.

Planos detalhe de uma outra mulher arrumando o pano na cabeça, e de suas mãos tocando um instrumento de madeira são o prelúdio do encontro de Naná Vasconcelos com Dalva do Samba. E eles literalmente caem no samba, dançam ao som de “Beiramar”, uma das diversas composições dessa sambista, que declara: “o samba é a vida, é aonde acaba todas as tristezas”.

De maneira irreverente, Dalva conta alguns aspectos de sua história. E até com o amargor do jiló e da vida ela consegue fazer samba. Revelando assim um importante valor de nossa identidade afro-brasileira, a ludicidade, que é a capacidade que homens e mulheres negras tem de, mesmos nas condições mais adversas, manter seu desejo e alegria de viver, sorrir, brincar, dançar.

Assim como o pé de jenipapo, que mesmo cortado, floresceu (segundo Dalva foi o samba que o trouxe de volta), também essas expressões culturais afro-brasileiras resistem, e se mantem vivas por que tem raízes, tem história, estão inseridas dentro dessa espiritualidade de matriz africana, que reconhece a sacralidade do corpo, que é vida, é documento, traz uma memória individual e coletiva, compartilhada pela palavra, pela música.

E é pedindo benção à Mãe Filhinha (outra sacerdotisa do candomblé), que Naná Vasconcelos parece ter chegado ao seu destino nessa viagem pelo recôncavo baiano. Guiado por vozes ancestrais, principalmente femininas ele desvela esse rico universo de poesia, ritmo e melodia, que constituem a musicalidade afro-brasileira.


Notas e Referências:
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 3.ed.





*Ceiça Ferreira é jornalista, doutoranda em Comunicação na Universidade de Brasília (UnB), e desenvolve atividades com mídia, culturas negras e comunicação em movimentos sociais. 



O documentário "Diário de Naná",  será exibido 
nos dias 05/03 (segunda-feira, às 15h) e 07/03 (terça-feira, às 12h30),
no Goiânia Cine Ouro (ingressos: R$1), pela Semira Mostra Mulheres no Cinema.


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